15 julho, 2010

dança até o arvoredo

Em 1935, Noel Rosa e Wilson Batista chegaram ao ápice da rivalidade que demonstravam em seus sambas.

Wilson Batista havia composto um elogio ao malandro na música "Lenço no Pescoço":

Meu chapéu do lado / Tamanco arrastando / Lenço no pescoço / Navalha no bolso / Eu passo gingando / Provoco e desafio / Eu tenho orgulho / Em ser tão vadio. / Sei que eles falam / Deste meu proceder / Eu vejo quem trabalha / Andar no miserê / Eu sou vadio / Porque tive inclinação / Eu me lembro, era criança / Tirava samba-canção / Comigo não / Eu quero ver quem tem razão. / E eles tocam / E você canta / E eu não dou.

Noel responde com "Rapaz Folgado", que, caso procurarem tem com a linda Roberta Sá cantando:

Deixa de arrastar o teu tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália / E tira do pescoço o lenço branco / Compra sapato e gravata / Joga fora esta navalha que te atrapalha. / Com chapéu do lado deste rata / Da polícia quero que escapes / Fazendo um samba-canção / Já te dei papel e lápis / Arranja um amor e um violão. / Malandro é palavra derrotista / Que só serve pra tirar / Todo o valor do sambista / Proponho ao povo civilizado / Não te chamar de malandro / E sim de rapaz folgado.


Wilson replica com "Mocinho da Vila":

Você que é mocinho da Vila / Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais / Se não quiser perder o nome / Cuide do seu microfone e deixe / Quem é malandro em paz / Injusto é seu comentário / Falar de malandro quem é otário / Mas malandro não se faz / Eu de lenço no pescoço desacato e também tenho o meu cartaz.

A resposta de Noel é um dos meus sambas preferidos "Feitiço da Vila", regravada por 26 em cada 26 cantores de MPB, incluindo João Gilberto, Ney, Martinho da Vila:

Quem nasce lá na Vila / Nem sequer vacila /Ao abraçar o samba / Que faz dançar os galhos, / Do arvoredo e faz a lua, / Nascer mais cedo. / Lá, em Vila Isabel, / Quem é bacharel / Não tem medo de bamba. / São Paulo dá café, / Minas dá leite, / E a Vila Isabel dá samba. / A vila tem um feitiço sem farofa / Sem vela e sem vintém / Que nos faz bem / Tendo nome de princesa / Transformou o samba / Num feitiço decente / Que prende a gente / O sol da Vila é triste / Samba não assiste / Porque a gente implora: / "Sol, pelo amor de Deus, / não vem agora / que as morenas / vão logo embora / Eu sei tudo o que faço / sei por onde passo / paixão não me aniquila / Mas, tenho que dizer, / modéstia à parte, / meus senhores, / Eu sou da Vila!

Wilson, não contente com o ponto do Noel, treplica com o ótimo samba "Conversa Fiada":

É conversa fiada dizerem que o samba na Vila tem feitiço / Eu fui ver para crer e não vi nada disso / A Vila é tranqüila porém eu vos digo: cuidado! / Antes de irem dormir dêm duas voltas no cadeado / Eu fui à Vila ver o arvoredo se mexer e conhecer o berço dos folgados / A lua essa noite demorou tanto / Assassinaram o samba / Veio daí o meu pranto.

Noel improvisou esses dois versos no final "Feitiço da Vila" como resposta, se procurarem tem um vídeo que o Caetano canta esses versos no final:

Quem nasce pra sambar, / chora pra mamar em ritmo de samba / Eu fui sair de casa olhando a lua / E até hoje ainda estou na rua. / A zona mais tranquila / É a nossa Vila, o berço dos folgados / Lá não tem cadeado no portão / Porque na Vila não tem ladrão.

E ainda fez o seu melhor samba na minha opinião, "Palpite Infeliz", várias versões no YT também, mas gosto da do Rui de Oliveira:

Quem é você que não sabe o que diz? / Meu Deus do Céu, que palpite infeliz! / Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, / Oswaldo Cruz e Matriz / Que sempre souberam muito bem / Que a Vila Não quer abafar ninguém, / Só quer mostrar que faz samba também. / Fazer poema lá na Vila é um brinquedo / Ao som do samba dança até o arvoredo / Eu já chamei você pra ver / Você não viu porque não quis / Quem é você que não sabe o que diz? / A Vila é uma cidade independente / Que tira samba mas não quer tirar patente / Pra que ligar a quem não sabe / Aonde tem o seu nariz? / Quem é você que não sabe o que diz?

Wilson perde a linha e faz um samba chamado "Frankstein da Vila" que Noel não responde (alguns dizem que respondeu, inclusive o vídeo aí embaixo, mas é mentira):

"Boa impressão nunca se tem / Quando se encontra um certo alguém / Que até parece um Frankenstein / Mas como diz o rifão: por uma cara feia perde-se um bom coração / Entre os feios és o primeiro da fila / Todos reconhecem lá na Vila / Essa indireta é contigo / E depois não vá dizer / Que eu não sei o que digo / Sou teu amigo"

ainda insiste e faz "Terra de Cego", mas não grava. A música se espalha por outro grupo da época:

Perde a mania de bamba / Todos sabem qual é / O teu diploma no samba. / És o abafa da Vila, eu bem sei, / Mas na terra de cego / Quem tem um olho é rei. / Pra não terminar a discussão / Não deves apelar / Para um barulho na mão. / Em versos podes bem desabafar / Pois não fica bonito / Um bacharel brigar.

Para terminar o duelo, Noel faz na mesma melodia "Deixa de ser Convencida".

Deixa de ser convencida / Todos sabem qual é / Teu velho modo de vida / És uma perfeita artista, eu sei bem, / Também fui do trapézio, / Até salto mortal / No arame eu já dei. / E no picadeiro desta vida / Serei o domador, / Serás a fera abatida. / Conheço muito bem acrobacia / Por isso não faço fé / Em amor, em amor de parceria / (Muita medalha eu ganhei!)


Incrível, né? Fiquei muito animado quando descobri isso. Depois os dois até gravaram juntos. É bem cliché, mas quem ganhou no duelo foi a gente. :-)





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